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sábado, 15 de janeiro de 2011

Íscar Pino, Um Menino Sem Face.


Íscar Pino nasceu sem face como as tantas crianças que nascem todos os dias. Nasceu porque passou nove meses sendo gerado no ventre de sua mãe. Ela que teve o desejo de ter um filho, para não ficar sozinha no mundo. Ela que nem estava tendo o apoio do homem que deveria ser o pai de Íscar Pino.
Um bebê normal e comum. Se tivesse nascido numa favela, poderia ter a chance de encontrar sua face nas coisas ruins que acontecem ali, (porque a imprensa faz o mundo pensar que só existem coisas ruins nas favelas). Se tivesse nascido num condomínio fechado, poderia ter a chance de ser filho de algum artista, ou grande empresário, e encontraria sua face nas sombras do que os pais eram.
O menino nasceu num bairro comum de classe média. Olhavam para ele e diziam, olha que bonitinho o nenenzinho; igual fazem com todos os nenéns que nascem por ali e por todas as partes do mundo. Porque bonitinho todo nenenzinho é, mas a maioria consegue chamar a atenção somente enquanto é nenenzinho, depois...
Você consegue imaginar porque Íscar Pino era um menino sem face? Já imaginou um menino nascer sem face? Não é crueldade, nem tampouco aberração... ele, como a maioria dos bebês, era um menino  que possuía um rosto sem face...
Íscar Pino nasceu com dois olhos graúdos, que só conseguiam enxergar as mesmas coisas que todas as pessoas enxergavam!
Nasceu com duas orelhas bonitinhas, mas cujos ouvidos ouviam somente as coisas que todo mundo ouvia!
O nariz até que era charmoso (puxou o nariz da mãe, era o que todos diziam), porém conseguia sentir somente os cheiros que todas as pessoas de sua idade ou não, sentiam!
E a boca? Que boca mais lindinha tem esse menino, porém entrava somente as comidas que todos conheciam, e saiam palavras comuns a todos, e canções... se saíssem canções seriam as da moda!
Por isso Íscar Pino era um menino sem face, que deveria viver assim pelo resto de sua vida. Fazendo as coisas que todos faziam, para se manter igual. Embora não entendesse muito bem as coisas, desde pequeno ele observava o mundo e tentava imitá-lo.
Ele não conhecia seus avôs, pois sua mãe tinha saído de casa cedo. Aventurou-se pela vida, trabalhando de casa em casa, onde encontrou pessoas boas, mas passou por muitas humilhações também. Quando Íscar Pino nasceu, ela estava morando num barraco nos fundos da casa onde trabalhava.
Por sorte estava ali, pois caso contrário não teria conseguido alimentar o menino. O salário era muito pequeno e as necessidades eram sempre maiores. Com o nascimento do menino as despesas aumentaram. Veio também à responsabilidade de alimentá-lo, vesti-lo, depois encaminha-lo para a escola.
Quando ainda bem jovem, a mãe de Íscar Pino decidiu buscar os componentes para formar sua própria face. Não sabia, mas o caminho a ser trilhado era muito perigoso. Ela acreditou que poderia conquistá-lo facilmente, e saiu pelo mundo em busca de suas partes. Olhos, nariz, boca, orelhas bastaria seguir as pessoas que as tinham, e pronto. Mas descobriu que não era assim.
Olhava para o pequeno Íscar Pino e temia pelo menino. Lembrava-se da promessa de um Tareco, que a faria uma rica menina. Tareco eram aqueles homens velhos (para ela que era uma jovenzinha), mas cheios de conversa fácil e alguma beleza modelada. Lembrava-se com angústia o dia em que o Tareco entrou no seu quarto, de madrugada, e segurou-a com suas garras, machucando-a.
O Tareco prometera que lhe daria lindos olhos. Olhos capazes de enxergar lá na frente sem muito esforço. Convencera que lhe daria um nariz belo e capaz de se enfiar onde os outros não eram chamados. Mostrara-lhe em algumas mulheres lindas bocas, capazes de dizer coisas maravilhosas, ou duras, mas sempre na hora certa. Dissera-lhe que arranjaria uma muito melhor que aquelas. A fizera crer que em seus ouvidos entrariam somente as coisas boas e práticas da vida.
Percebeu, depois daquela madrugada, que para se ter uma face não dependia de recebê-la dos outros. Teria que conquistar a própria face, porém não sabia como. O Tareco, ao sair de seu quarto não voltou mais. A abandonou a própria sorte, naquela cidade grande, e naquele quarto de pensão de terceira.
Levantou-se e saiu pela cidade à procura de outro trabalho. Enquanto caminhava sentia as garras daquele Tareco a machucar-lhe o corpo. Era como se ainda estivesse naquele quarto de pensão. Nessa hora sentiu muita saudade de sua casa onde a cama tinha um colchão de palha e um cobertor doado pela ação social; mesmo assim era mais confortável e segura do que aquela cidade.
Estava muito longe de casa, e sem nenhum dinheiro. Sentou-se no banco de uma praça, cobriu o rosto com as mãos e chorou muito. Após desabafar começou a olhar as pessoas passarem, e percebeu que ali todos não tinham face. Eram apenas mais um passando atrás do outro, seguindo um rumo qualquer.
Olhou para um outdoor e viu um casal fazendo propaganda de roupas de certa grife. Sim, queria ser igual a eles! Mas como alcançaria tamanho êxito? Talvez existisse um depósito de olhos, bocas, narizes e ouvidos onde ela poderia encontrar os seus, e compor sua face! Levantou-se e saiu decidida. Bateria de porta em porta a procura de um novo emprego, sem a interferência de um Tareco.
Seria fundamental conseguir um novo emprego; acreditava que sem dinheiro não conseguiria encontrar a sua face. Desde aquela data percorria uma e outra casa de família em busca de um trabalho melhor. Alguns meses em uma casa, outros meses em outra, até chegar ao barraco onde mora atualmente. Estava bom, pois os patrões vinham somente nas férias e nos feriados prolongados. Era caseira agora; de empregada doméstica, conseguira ser promovida a caseira.
Embora não tenham sido muitos anos desde que saíra de casa, ela já havia desistido de encontrar sua face. Nem tinha percebido ainda, mas olhava para o pequeno Íscar Pino sentindo medo do mundo. Decidiu engravidar para ter companhia, mas agora a responsabilidade parecia enorme. A criança iria querer conquistar sua própria face, talvez... e se a abandonasse como ela havia feito com seus pais?
☺☻☺
Conforme Íscar Pino estudava, percebia no ambiente escolar a diferença entre uns e outros alunos. Percebia que uns poucos extremamente dedicados eram mais notados pelos professores e administradores do colégio. Os olhos daqueles alunos pareciam ver coisas que os outros não viam; seus ouvidos escutavam diferentes, pois de suas bocas saíam outras interpretações. Pareciam farejar as coisas, e por isso estavam sempre à frente.
Por outro lado havia aqueles que se destacavam por seus comportamentos duvidosos. Cada um construindo e mostrando sua própria face. Um terceiro grupo, no qual ele se incluía, apenas estava ali. Aprendia o que lhes ensinavam, e praticamente repetiam as ações comuns a todos. Esse grupo era o maior de todos. Era cômodo ser comum, pois as pessoas não prestavam muita atenção e não demandava muito esforço. Por outro lado, Íscar Pino começava a achar aquela situação muito solitária.
Olhava para os lados e via todos iguais a si mesmo. Pensava na sua mãe, em sua luta diária num trabalho que não transformaria a sua vida. Seria apenas mais uma que, talvez, mais tarde, conseguisse uma aposentadoria do INSS. Se conseguisse poderia ter algumas prioridades como filas de banco, quem sabe a energia elétrica mais barata. Continuaria, porém, anônima no meio de tantos milhões de pessoas em situações iguais ou parecidas.
Foi ao Iniciar a quinta série, que sua mãe adoeceu. Muitos anos de trabalho intenso, e ela contraíra um bico de papagaio que a impedia de realizar qualquer esforço. Era preciso Íscar Pino ir à luta. Mas como encontrar um trabalho assim de repente? Saiu pelas ruas pedindo de loja em loja, empresa em empresa, fábrica em fábrica. Ora era muito jovem, não havia vaga.
Conseguiu um trabalho de entregador de jornais. Acordava as quatro da madrugada, montava em sua bicicleta e saía entregando os jornais de assinatura. Voltava para casa, tomava café com pão e manteiga, e seguia até a avenida mais próxima. No semáforo de um cruzamento oferecia jornal aos motoristas que paravam ali. Aproveitava as quatro vias.
Compartilhava o semáforo com vendedores de laranjas, mexericas, balas e doces; cada dia um produto diferente. Observava aquelas pessoas na luta angustiante para conseguirem o de comer. Alguns tão jovens quanto ele e outros mais velhos. Não queria que sua vida se resumisse naquilo. Não percebia, mas seus olhos começavam a surgir e formar sua face.
De tanto trabalhar com jornais, começou a prestar atenção neles. Percebeu que todos os dias estampavam-se várias faces ali: do bem, e do mal. Tudo dependia da própria escolha. Páginas sobre política, páginas financeiras, páginas policiais, caderno sobre artistas, etc. ali se dividiam claramente as opções de cada um, e mostrava aqueles que buscavam suas próprias faces.
Observando o derredor começou a perceber que as faces não se resumiam as celebridades. Ouvia casos contados por seus companheiros de semáforo, relatando pessoas da periferia que conseguiram fazer a diferença. Foi percebendo que era muito bom ouvir as pessoas; aprendia mais ouvindo, do que falando. Cada estória que ouvia armazenava-se como uma nova experiência vivenciada, mesmo não sendo sua.
Apreciar as amizades do semáforo foi questão de tempo. Sentia falta quando um dos vendedores não aparecia. Eram pessoas, seus colegas de trabalho. Suas experiências davam forças a Íscar Pino para não desistir. Precisava ajudar a sua mãe e terminar os seus estudos. Na primeira oportunidade conseguiria algo melhor para fazer.
Admirou-se em certa ocasião, quando o motorista de um veículo maltratou um de seus colegas de semáforo. O rapaz tentou entregar um panfleto e o motorista fechou o vidro prendendo a sua mão. Íscar Pino aproximou-se e viu que o motorista esbravejava. Ameaçava arrancar com o carro e arrastar o rapaz dos panfletos. O jornaleiro ordenou que o motorista abaixasse o vidro. Disse que era um absurdo tratar daquele jeito alguém que estava simplesmente defendendo o pão de cada dia. Irritado o motorista abaixou o vidro e falou ao arrancar: meta o seu nariz onde for chamado, seu babaca!
Íscar Pino sentia-se cada vez melhor. Embora a vida fosse difícil, não se sentia mais aquele menino sem face. Começava a aguçar os seus sentidos, além do que a trivialidade do dia-a-dia oferecia. Agora sentia o desejo de falar; expor suas experiências diárias a fim de despertar os outros para as coisas da vida que de tão expostas, parecem completamente ocultas.
Começou a escrever em versos, suas experiências. Conseguiu que um amigo na gráfica do jornal imprimisse seus versos. Desejava que todos que passassem por aquela esquina conhecessem suas lutas pelo ganha-pão. Enquanto oferecia os jornais, cantava seus versos ritmadamente e distribuía os impressos com as letras. Em pouco tempo, formou-se um novo conceito naquele cruzamento. Quem passava por lá já sabia que encontraria:

 
Íscar Pino: o poeta do semáforo. E sua venda de jornais se transformou num ótimo negócio.

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